Sessenta anos antes de Pablo Picasso e Georges Braque darem início à Colagem como expressão artística propriamente dita, súditas da rainha Vitória produziam fotocolagens surrealistas sobre aquarelas, que usavam para entreter amigos e exibir status
"Como nasceu o recorta e cola"
Artigo de Tonica Chagas, publicado no jornal O Estado de São Paulo - 03/03/2010
Com suas tesourinhas, potinhos de cola e aquarela, senhoras e senhoritas da aristocracia britânica já criavam fotocolagens cheias de imaginação décadas antes de a vanguarda artística do início do século 20 começar a compor com essa técnica. Organizada pelo Art Institute of Chicago e exibida no Metropolitan Museum, a pequena e divertida Playing with Pictures: The Art of Victorian Photocollage lembra este fenômeno pouco conhecido da fotografia de meados do século 19. Os 48 trabalhos reunidos ali, entre eles um de autoria da princesa Alexandra (1844-1925) e cedido pela rainha Elizabeth II, mostram um aspecto da sociedade vitoriana guardado em álbuns feitos para entreter amigos, puxar conversa com pretendentes e exibir o círculo de amizades, real ou não, de suas criadoras.
Uma das coisas que estimulou aristocratas vitorianas a criar seus álbuns foi o uso das cartes de visite, os cartões de visita com retratos, que disseminou a fotografia entre a classe média e deu celebridade a gente da high society. Com uma câmera de quatro lentes, podia-se expor oito retratos com poses diferentes num único negativo em placa de vidro, barateando e multiplicando a produção. Colecionar retratos de amigos, parentes e figuras da nobreza virou, então, uma febre, a cartomania. Em vez de apenas guardar os retratos em álbuns comuns, as britânicas ricas e educadas os recortavam e colavam em cenas elaboradamente desenhadas com aquarela nos seus álbuns especiais.
Para uma súdita da rainha Vitória, desenhar e pintar demonstravam não só refinamento e talento como também eram sinal de status, de que ela tinha meios para comprar manuais e pagar aulas particulares. Na época, como era preciso muito tempo de exposição do negativo para capturar uma imagem, as pessoas posavam para a câmera como tableaux vivants e aquelas artistas produziam as colagens dos seus álbuns da mesma maneira. Uma das vantagens que tinham era representar situações impossíveis de fotografar, como pessoas passeando ao luar, por exemplo, pois ainda havia limitação técnica para capturar movimento com pouca luz.
A fantasia visual nos álbuns de Playing with Pictures demonstra também o humor de quem os criou. Composições com cartas de baralho lembram um passatempo comum da alta sociedade vitoriana, assim como o "mixed pickles", jogo em que se formam sentenças engraçadas com palavras escritas em papeizinhos tirados ao acaso de dentro de um jarro. Outra inspiração comum eram as histórias infantis dos Irmãos Grimm, de Hans Christian Andersen e o Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, que induziam a brincar com proporções, fazer combinações surreais de cabeças humanas com corpo de animais ou armar cenários de contos de fadas com rostos de criancinhas de verdade.
Alimentados pela troca de cartes de visite, os álbuns também funcionavam como um site de relacionamento social de hoje em dia. Quanto mais figurão aparecesse em seu álbum, mais alto seria o lugar de sua dona nos escalões do "quem era quem" da sociedade vitoriana. Às vezes esse status nem vinha do berço, como era o caso de Mary Georgiana Caroline Filmer (1840-1903). Apesar de não ter título aristocrático, desde cedo ela circulou no meio político e no grand monde de Londres. Fotos dela aparecem nos álbuns da princesa Alexandra e da condessa de Yarborough e sabe-se que o príncipe de Gales, o futuro Eduardo VII e conhecido mulherengo, manteve um longo flerte com ela por meio de cartões de visita. Num de seus álbuns, numa cena de visita em sua sala de desenho, lady Filmer colocou o príncipe em lugar de destaque e colou uma foto menorzinha do marido sentado perto de um cachorro.
Os álbuns reunidos em Playing with Pictures formam um autorretrato coletivo da aristocracia vitoriana e apontam as origens da fotocolagem como arte. Enquanto a maior parte da fotografia britânica naquele período era produzida por homens, exibida em salões anuais e impressa para venda, as mulheres a usaram para o prazer particular e anteciparam movimentos artísticos tão importantes como o surrealismo e o construtivismo.
Muito interessante a matéria super esclarecedora sobre esta técnica que sempre foi perseguida como "menor". UM abraço grande.
ResponderExcluir