Pouco depois de concluir o painel A árvore, em 2009, um artista de collage americano, por intermédio das redes sociais, associou o conceito do meu trabalho ao do Buquê de olhos de Hannah Höch (1889-1978). Eu ainda não havia iniciado o estudo da história da técnica, portanto fiquei surpreso com a proximidade das expressões.
Segundo o teórico e artista Fernando Fuão, autor de A collage como trajetória amorosa, a escolha de imagens de olhos em collage, muito comum por sinal, pode revelar a intenção do artista em apresentar a sua visão particular, distinta, do mundo.
Buquê de olhos – Hannah Höch – 1930
Painel A árvore – collage sobre MDF – 350 x 250 cm – 2009
No artigo anterior, Collage. Arte marginal? http://silvioalvarez.blogspot.com/2019/05/colagem-esta-tecnica-tem-historia.html abordei a minha intenção, por vezes inconsciente, de aproximar a collage da pintura, ou, pelo menos, de demonstrar a gama de alternativas técnicas possíveis. Mas para essa aproximação ocorrer, hoje constato, precisei percorrer um longo caminho que tentarei descrever aqui.
Quando produzi o painel A árvore empregando olhos para simbolizar folhas (ou flores) acabei por trabalhar intuitivamente todo um aspecto técnico que só bem mais tarde passaria a atentar. Colar olhos com tonalidade mais escura, primeiro, por exemplo, para somente depois sobrepô-los com os olhos-folhas mais claros.
Foi a partir dessa experiência e de algumas outras é que comecei a compreender o quanto poderia evoluir tecnicamente e como e quanto a percepção pode ser amplificada no trabalho metódico de folhear centenas de revistas, de recortar figurinha por figurinha prestando atenção em cada detalhe e sinuosidade, dia após dia. Concluí que o caminho para a liberdade criativa é o fazer artístico, o trabalho árduo, amoroso, persistente e determinado, com um desprendimento sincero, aberto aos aprendizados que a prática oferece.
Para conhecer meu processo criativo http://www.silvioalvarez.com.br/processo-criativo/
Somente conhecendo profundamente a parte técnica é que conseguimos deixar a imaginação livre das amarras criativas e assim liberar a emoção para que a produção flua, verdadeira.
“A experiência estética é um modo de cognição através da apreensão direta (...) é uma ampliação e uma intensificação da percepção sensorial”. Harold Osborne
Além do senso de observação, indispensável, de mergulhar nos detalhes dos objetos-alvo, do que está a nossa volta, cotidianamente, a collage exige uma percepção mais profunda a fim de que consigamos reproduzir o desejado, empregando imagens já utilizadas em outras circunstâncias. Para mim, é como se essas habilidades somente funcionassem em um estado mágico, por intermédio de uma conexão livre com o inconsciente. Assim como em outras expressões artísticas, imagino, para isso acontecer, a técnica tem de estar dominada.
Ao empregarmos as imagens pré-fabricadas, de origens diferentes, trazemos para a nossa expressão toda a carga simbólica de cada imagem. Portanto, além de pintar com papel, em collage também reprocessamos conceitos, desconstruímos realidades para construir uma nova. Sendo assim, já que o símbolo é uma das molas-mestras da collage, é importante que também conheçamos a simbologia dos objetos-alvo, principalmente se estes forem recorrentes. No meu caso, vêm sempre à tona olhos, flores, relógios. castelos, entre outros.
Na cultura japonesa do arranjo de flores (Ikebana), por exemplo, a flor é considerada como o modelo do desenvolvimento da manifestação, da arte espontânea, sem artifícios. No Ikebana, o arranjo de flores representa o ciclo vegetal e, por conseguinte, um resumo do ciclo vital, seguindo um esquema ternário: o galho superior é o do céu, o galho médio o do homem e o galho inferior, o da terra. Assim como essas três forças naturais devem harmonizar-se para formar o universo, as hastes das flores devem equilibrar-se no espaço. Nos arranjos florais japoneses, simbolicamente, experimenta-se o ritmo da tríade universal, na qual o homem é o mediador entre o céu e a terra.
Na História da Arte as flores são um dos aspectos essenciais de uma natureza-morta, que passa a surgir como gênero artístico somente em meados do século XVI . Nas línguas latinas, natureza-morta, nature morte, e nas línguas saxônicas , still life, stilleben (vida imóvel, vida em suspensão).
Natureza-morta de Juan van der Hamen y León (1596 - 1631)
Geralmente, os itens preferidos dos pintores dedicados às naturezas-mortas são as flores, mas também comidas e bebidas, louças, instrumentos musicais, livros e tudo o que mais se referisse à esfera doméstica, vocações e hobbies.
Nas vanitas, tipo de obra de arte simbólica associada à natureza-morta, do norte da Europa e dos Países Baixos, nos séculos XVI e XVII, que comumente incluía caveiras (crânios), a representação pode ser compreendida como uma alusão à insignificância da vida terrena e à efemeridade da vaidade. A palavra vanitas, em latim, significa vacuidade, futilidade, e na História da Arte é interpretada como vaidade. As caveiras, eram lembretes da inevitabilidade da morte; frutas apodrecidas, simbolizavam a decadência trazida pelo envelhecimento; fumaça, bolhas, relógios e ampulhetas, assim como as flores, frutas e borboletas, simbolizavam a brevidade da vida.
Ao experimentar a pintura com imagens já utilizadas e de origens diferentes vi que as naturezas mortas, mais especificamente os arranjos florais, além de serem bastante atrativos ao público, poderiam me fornecer o grau de dificuldade necessário para o avanço do estudo da luz, cor e perspectiva, de uma forma menos trabalhosa e demorada do que nas paisagens.
Este foi meu primeiro arranjo floral, de 2015, produzido para um projeto de capa de caderno. Creio que foi a partir desse trabalho que nasceu todo o meu encantamento pelo tema e foi também quando percebi que desejava incluir os arranjos florais como objetos de criação daí pra frente.
Em 2016 descobri a abrangência da obra de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962), além das suas paisagens com igrejas e neblina, e produzi A arte das flores,
Flores para Guignard - 2016
Flores para Guignard II - 2018
Foi a obra de Alberto da Veiga Guignard (1896-1962) que fez com que eu me interessasse em definitivo pelos arranjos florais. Tanto que resolvi criar a série Flores para Guignard. Diga-se de passagem, o mestre da pintura moderna brasileira também produziu collages surrealistas, que nada tinham de floridas.
Arranjo floral e collage surrealista de Guignard
Em 2017, produzi a série Arranjos florais, com a intenção de trabalhar as flores, mas com cores específicas em diferentes tonalidades.
Em 2018, nasce Flores para Cézanne, buscando aliar o meu conceito de perspectiva em paisagens com o de arranjo floral. Na História da Arte, foi com Paul Cézanne (1839-1906) que o gênero natureza-morta ganhou novas dimensões, imortalizado pelas composições com maçãs executadas a partir de 1870. Tanto quanto suas maçãs, seus arranjos florais são igualmente inspiradores.
Flores para Cézanne - 2018
Em 2019, em Jarro de flores, busquei reunir tudo o que havia assimilado com os trabalhos anteriores.
Refiro-me nesse artigo tão somente à collage como recortar, transformar e colar imagens impressas pré-existentese e de diversas origens. Pois existe ainda a possibilidade da criação dos elementos florais com o recorte do papel liso. Com referência à representação de flores, Herta Wescher, em sua História da Collage, menciona o recortador Fachri, que já no século XVI, na Turquia, inserido na ornamentação de livros, produzia delicadas flores e folhas com sua tesoura. No campo disseminado por Etienne de Silhouette (1709-1767), o controverso desenhista e ministro das finanças francês que deu nome ao procedimento, cabe ainda mencionar Philipp Otto Runge (1777-1810), que além de exímio no recorte, também era pintor.
Trabalho em recorte de Philipp Otto Runge
Voltando à pintura, com o intuito de inspirar e ser inspirado, realizei pesquisa que apresento a seguir: arranjos florais de mestres da pintura, de diferentes épocas e estilos.
Vaso com Flores (1930) - Alberto da Veiga Guignard (1896-1962)
Cândido Portinari (1903-1962)
Obra de 1930 de Alfredo Volpi (1896-1988)
Vaso branco com flores (1910) de Odilon Redon (1840-1916)
Henri Matisse (1869-1954)
Vaso de flores - Clóvis Graciano (1907-1988)
Vaso com flores - Tarsila do Amaral (1886-1973)
Vaso de flores - Anita Malfatti
Henri Fantin-Latour (1836-1904)
Referências bibliográficas:
- A collage como trajetória amorosa – Fernando Fuão
- Colagens Hannah Höch 1889-1978- Institut für Auslandsbeziehungen - IFA
- Para apreciar a arte – Roteiro didático – Antonio F. Costella
- Dicionário de símbolos – Jean Chevalier e Alain Gheerbrant
- Guignard – uma seleção da obra do artista – Museu Lasar Segall
- A arte de Cézanne – Nathaniel Harris
- La Historia Del Collage – Herta Wescher
- Silhouettes - A History and Dictionary of Artistis - E. Nevill Jackson
- Silhouettes - A History and Dictionary of Artistis - E. Nevill Jackson
- NATUREZA-MORTA . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo360/natureza-morta
- FLORES . In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/termo3185/flores
- Vanitas – Wikipédia https://pt.wikipedia.org/wiki/Vanitas
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